quinta-feira, 1 de julho de 2010

A cruz universal como traição da cruz original

Não creio que o que vou dizer esteja convictamente firmado para mim, embora seja coerente o bastante para ser dito. O desenvolvimento da teologia da redenção pela cruz, do sacrifício perfeito, tornou-se um álibi poderoso e eficaz contra a narrativa do evangelho e o seu modus vivendi a todos oferecido – o que o vício não deixa mais ver na expressão “Reino de Deus”. A teoria da morte salvífica de Cristo, isto é, a morte que uma só vítima perfeita deveria sofrer em favor de todos, de um lado propicia um esquecimento sutil das razões históricas que levaram aquele rapaz para a cruz – a saber, a sua forma insensata de viver e promover vida – e de outro, censura veladamente a necessidade ou o perigo da imitação daquela vida. Se a agonia de Cristo é redentora (e o dogmatismo faz isso ser entendido de forma absurdamente transcendental a qualquer significado existencial) e se ele foi destinado para isso, estamos todos livres do sacrifício; e se a morte dele foi provocada pela forma de vida que ele vivia e promovia, estendemos até aí a nossa isenção. Eis a construção de um silogismo falso (e extremamente conveniente): se B (a morte) não nos pertence mais, e B (a morte) é uma extensão inevitável de A (a vida), então A (a vida) também não nos pertence mais. Se não preciso imitar ao Cristo sacrificado, não preciso imitar, tampouco, ao Jesus vivo. Girardianamente falando, o bode já foi sacrificado.

O rapaz monstruosamente torturado na cruz, que pouco antes encantava com seus gestos nobres e perturbava com suas palavras precisas, a quem atribuímos uma natureza divina, não permitiu durante todo o seu ensino errático ser alçado sozinho à condição de salvador, convidando, pelo contrário e a todo momento, a segui-lo, a imitá-lo, a fazer como ele fez. Como bem percebeu Irineu e Atanásio (para ficar nos mais antigos), queria nos fazer participar de sua condição; sendo ele o ponto de partida, o primeiro entre todos, o Desbravador, sabia que a redenção não é uma mágica, muito menos um absurdo sacrifício: ela se dá num contraste impossível de expressar, entre a conversão interior a cada pessoa e a irradiação irrefreável dessa postura no meio do mundo; a redenção é consequência de uma forma de estar nesse mundo. Por isso ele quer que a sua proposta continue com aqueles que a aceitaram. E a proposta historicamente localizada para o judaísmo legalista helenizado e romanizado do seu tempo é a irradiável e irremediável e graciosa generosidade de Deus, testemunhada no fato de que a vida, o sol e a chuva, são dados todo dia sem nenhuma exigência de pagamento – seja em boas intenções, seja em boas obras. Isso bate de frente com o ensino dogmático de um deus mesquinho e antropomórfico, que faz barganha, exige pagamentos. Entretanto, a Generosidade, que no fim das contas tomará conta de tudo e todos, precisa antes disso que os que a descobriram e a ela aderiram livremente vivam como se já estivessem lá naquele futuro. Ou seja, se acreditamos num Deus generoso, seremos divinamente generosos e portanto humanos em tudo, e isso vai ser irradiado. E é aqui que chega o “porém”…

Esse tipo de anti-teologia, no contexto em questão, só pode partir dos que nada têm a perder, e quando começar a irradiar vai fatalmente atingir quem quer que esteja numa posição de poder e obtenha ganhos com a teologia da culpa e da barganha com um deus implacável, mais juiz que Pai. Ou seja, isso vai atingir de cheio os poderosos do contexto em questão. Caso ocorra da forma convencional, esses caras vão fazer de tudo para manterem seu poder, inclusive matar os que se atreverem a ser generosos e bondosos. E é o Poder, qualquer poder que inflija culpa, separação e desigualdade, que os Desbravadores da Generosidade terão que negar e enfrentar, apenas portando a generosidade de um deus, o que pode levar à morte.

Portanto, a cruz não é necessária em si, sendo essa conclusão fruto da teologia pagã do mérito. A cruz é conseqüência de um confronto direto entre a Generosidade e o Poder, o Humano e o Satânico, dois elementos antagônicos da trama novelesca em que a vida se desenrola. O dramático é que para a Generosidade se livrar da cruz tem que usar um expediente de Poder e, assim, ser transformada no seu oposto. Pra permanecer generosa a Generosidade tem que se despir de qualquer poder. Sendo assim, e aplicando a anti-teologia a um caso específico, o de onde ela nasceu, Jesus não morreu piedosamente por mim, morreu desgraçadamente porque esses conceitos – Poder e Generosidade – não são entidades transcendentais, são atos e inclinações de gente humana; morreu tragicamente pelas mãos dos teólogos dogmáticos de seu tempo, judeus e romanos; morreu terrivelmente porque escolheu a Generosidade enquanto todos escolhiam o Poder, e morreu assustadoramente porque combateu o Poder com a Generosidade, morreu, enfim, pela covardia dos que escolheram o Poder.

Uma escandalosa corrupção do evangelho foi utilizar como sacrifício redentor a morte desnecessariamente dolorosa de quem abolira a necessidade de sacrifícios redentores. Assim como a mensagem do evangelho de Jesus é totalmente circunstancial e histórica, espalhando-se dentre a história de várias maneiras, também são circunstanciais e históricas sua tortura e sua morte. A cruz para Jesus, como tinha sido a cicuta para Sócrates, como foi a má-fama para Francisco de Assis, o desprezo para Nietzsche, a bala para Gandhi (para ficar nos mais famosos), nada disso era necessário, embora já estivesse cotado nas apostas deles mesmos como consequências. Deus aparece no anti-poder não por necessidade intrínseca a ele, mas por necessidade circunstancial, porque não pode deixar de ser Deus, ou seja, Generosidade. E para permanecerem na Generosidade, todos estes apresentadores de Deus julgaram necessário não abrir mão de abrir mão de qualquer poder, cada qual a seu modo, cada qual com sua linguagem, cada qual com sua cruz.

Não sei se eu percebi errado, mas me parece que o rapaz que foi crucificado propunha que se eu gostasse da sua proposta e escolhesse a Generosidade em vez do outro lado, teria que incluir essa fatalidade nas minhas pretensões. É bem possível que essa seja a causa de eu ser tão indeciso e errático e de eu carregar essa tendência pagã de freqüentar igrejas onde a imagem da cruz e as dores do crucificado são arrancadas do seu terrível significado histórico e alçadas à dignidade farisaica de universais.

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